terça-feira, 21 de outubro de 2014

Questões de Goiânia em 09 de outubro de 2014



Viajar para trabalhar com a formação de professoras e professores é sempre um aprendizado, desde as mudanças nas ações dos aeroportos (função "seja seu próprio atendente", como propõe a Gol, que vc faça seu check in, troque seu acento, limpe a aeronave, rs...) até o mais significativo, porque permeado de significantes outros, práticas interessantes, debates acalorados. Por fim, a viagem foi ótima e, na bagagem de retorno, além das lembrancinhas, muitas questões e, entre estas, as perguntas que não tiveram comentários por falta de tempo naquele auditório imenso do Centro de Convenções.
Seguem as questões, com meus agradecimentos (nada mais triste que terminar uma participação em mesa redonda sem perguntas do auditório...):
1. Como viabilizar a construção de um currículo em uma perspectiva contra hegemônica às ideologias neoliberais quando se está inserido na sociedade do consumo regida pela lógica do mercado? É preciso uma transformação dos homens, das relações de trabalho ou da escola?
Indícios de resposta:
É preciso transformar as pessoas, as relações de trabalho e a escola, esta transformação ocorre de toda a forma e todos os dias, independente de nossa vontade. Embora a escola possa parecer igual ao que sempre foi, ela está sempre em transformação, porque é construída, vivida, sentida por pessoas que também estão em transformação. Talvez a questão seria: como transformar a nossa prática escolar em uma sociedade que se transforma com base em valores que queremos superar? Fazemos muitas coisas na escola, nossas propostas curriculares são diversas e amplas. Algumas coisas que fazemos conservam valores que queremos superar (injustiça, desrespeito, autoritarismo), outras coisas que fazemos nos ajudam a caminhar na direção que escolhemos: justiça, respeito, autoridade e participação. Penso que as práticas democráticas podem ampliar o que fazemos no sentido que queremos: assembleias para discussão do que realmente é importante; envolvimento da comunidade nas atividades da escola, nos estudos de caso, na produção de propostas de trabalho; atitudes cotidianas de escuta de todos por todos. Estas ações até podem fazer com que nossas atividades possam demorar mais para serem realizadas, mas fazer com participação nos ajuda a mudar a escola e a sociedade, porque muda o ambiente em que as pessoas fazem a escola e a atitude das pessoas neste ambiente.  Parabéns pela sua pergunta, você atenta com razão para a inviabilidade de dissociar a escola das questões sociais que, presentes na sociedade, também estão presentes na escola.
2. Como vê o currículo bimestralizado com conteúdos previamente definidos, frente a sua ideia de ensino conforme os interesses dos alunos?
I.R. (indício de resposta, porque o tempo aqui também é curto): Vejo o currículo bimestralizado como uma ilusão que se mantém na escola porque acreditamos que funciona, embora saibamos, pela nossa experiência cotidiana e pelos estudos que desenvolvemos na formação de professoras e professores, que a aprendizagem é um processo contínuo, de sempre retomar o que é realmente importante muitas e muitas vezes (o que contrapõe à ideia da bimestralidade) durante a educação básica. Todavia, imagino que os conteúdos não são definidos na hora em que o professor/a professora entra na sala. Compliquei? Trabalhar com conteúdos que façam sentido para os estudantes, isto é, conteúdos que possam se tornar eficientes/relevantes para os estudantes, não significa improvisar conteúdos, ou trabalhar apenas com o que os estudantes dizem ser interessante. É necessário muito trabalho, nas experiências que acompanho, para que os estudantes atribuam sentido aos seus estudos escolares. Parece-me que a pergunta se referiu às propostas curriculares engessadas, que dividem um conteúdo escolar tradicional entre os bimestres, na suposição de que bastaria ao professor trabalhar com o conteúdo naquele momento que o conteúdo seria aprendido pelos estudantes. O problema está menos em ter um conteúdo previamente definido e mais em fazer esta definição apenas com especialistas (da Universidade, da SME ou da Escola). Entendo que, no lugar de definir externamente à escola o conteúdo a ser trabalhado, deveríamos, por meio do diálogo com as crianças, jovens e adultos, fazer esta definição prévia (não bimestral, obviamente). Chamo de conteúdo, aqui, a finalidade da experiência educativa em seu conjunto e as temáticas a serem estudadas que pudessem dar consequência a finalidade coletivamente construída. Parabéns pela pergunta, você indica a importância de considerar os interesses dos estudantes e a incompatibilidade de “propostas prontas por outros” serem compatibilizadas com a ideia de um currículo relevante para todos.
3. Se o currículo do ciclo é amplo, aberto e flexível, qual é o papel do livro didático que chega à escola e é entregue aos alunos? Se dissermos que constitui um norte para o trabalho do professor, não estaríamos, de alguma forma, “seriando” o currículo do ciclo? Como nos livrar desse comprimido dentro de um frasco?
I.R.: Penso que o livro didático poderia ser substituído por outro tipo de livro, livros de estudos com maior qualidade na abordagem das temáticas, mas enquanto isto não acontece, o livro didático poderia ser utilizado como fonte de pesquisa, ser distribuído entre as turmas de forma a contemplar livros de diferentes “números” (livro 1, 2, 3, 4...) não de forma seriada. Parabéns pela sua pergunta, porque expressa o pleno entendimento de que a organização em ciclos implica em não seriar o conteúdo escolar, tal qual fazem os livros didáticos.
4. Com relação ao ciclo – agrupamento por idade. Como ver vantagem nessa forma de ciclo para o aluno que é matriculado pela primeira vez na escola com 12 anos e é colocado em sala com colegas da mesma idade, porém já em adiantado nível de estudo. Esse aluno estuda um ano no ciclo e é transferido para outra, agrupado por série. Como assegurar seu sucesso escolar?
I.R.: Como assegurar o sucesso escolar deste suposto estudante se sua matrícula fosse feita junto a crianças de 6 anos, onde ele teria um tratamento de crianças de 6 anos, aprendendo temáticas significativas para crianças de 6 anos? Como assegurar seu sucesso escolar sem lhe dar o direito de participar das discussões, estudos, trocas de adolescentes de 12 anos? Por que, para que ele aprenda questões que não aprendeu antes na escola, precisamos enturmá-lo com crianças de 6 anos fazendo com que, na melhor das hipóteses, ele concluísse o ensino fundamental com 21 anos (12 + 9 = 21)? Seria mais justo e educativo, parece-me, agrupá-lo entre seus pares na idade e oferecer serviços de apoio no contra turno escolar para suprir eventuais necessidades escolares. De toda a forma, parabéns pela sua pergunta, pois ela nos permite provocar duas questões fundamentais e complementares para entendermos o grupamento escolar em ciclos: (1) o agrupamento é por idade e não por conhecimento anterior adquirido; (2) para provocar a aprendizagem não é necessário que as crianças e adolescentes estejam agrupadas com base em um suposto conhecimento comum; (3) para o agrupamento em ciclos funcionar é preciso mecanismos de apoio escolar capazes de oferecer suporte às necessidades que o processo educacional vai apresentando.   
  5. Recentemente, em Goiânia, uma escola municipal foi incendiada por ex-alunos que tiveram uma briga... Posto este cenário mundial do capitalismo que impõe um padrão, e culpabiliza quem não o atinge, o que dizer do simbólico envolvido nesse processo do “colocar fogo na escola”. Será só pela falta de uma boa estrutura física?
I.R.: Penso que apenas a falta de uma boa estrutura física não seria suficiente, para um grupo saudável, atear fogo numa instituição. Da mesma forma, querer julgar o que aconteceu, sem conhecer as pessoas envolvidas, a instituição e o contexto do fato não seria razoável.
Tenhamos, todos os que acreditam em uma educação democrática, um bom final de outubro!

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